“O sistema não teme o pobre que passa fome. Teme o pobre que sabe pensar.”
— Paulo Freire
O Brasil comemorou com estardalhaço sua saída do Mapa da Fome da ONU. Viva! Agora apenas 1,2% da população está abaixo do consumo calórico mínimo para uma vida ativa e saudável. Parece pouco? Pois bem: em números absolutos são 2,5 milhões de brasileiros. É como se uma cidade inteira, do tamanho de Belo Horizonte, estivesse condenada a dormir de estômago vazio todas as noites. Mas não se preocupe, dizem os jornais, estamos fora do Mapa da Fome. Palmas para nós.
Enquanto isso, o planeta exibe uma estatística que beira o obsceno: 673 milhões de pessoas ainda passam fome. É 8,2% da humanidade – quase um em cada doze seres humanos. A África segue no epicentro da tragédia, mas os aplausos não cessam porque “houve uma ligeira melhora”. Quanta ternura há em um relatório técnico que celebra a diminuição da miséria como quem anuncia a queda no preço da gasolina.
No Brasil, a insegurança alimentar não é apenas um número frio. É aquela mãe que finge não gostar de arroz para deixar o pouco que sobrou para os filhos. É o trabalhador que “almoça” pão com café e se convence de que é apenas dieta. É o velho que troca o remédio pela comida e acaba sem nenhum dos dois.
E não se enganem: insegurança alimentar não é só fome. Ela pode ser “moderada”, quando a geladeira vira um enigma de esfinge: compro arroz e feijão ou um pacote de salsicha que dura a semana? Ou pode ser “grave”, quando não há nada a decidir porque simplesmente não há comida. Ironia das ironias: até a obesidade entra nesse cálculo, fruto de dietas baratas, ultraprocessadas e destrutivas, que enchem a barriga e esvaziam a saúde.
As causas? Um cardápio variado de tragédias:
Tudo isso temperado com a indiferença global, servida em porções generosas.
No fundo, a fome é a forma mais silenciosa e eficiente de genocídio: não exige exércitos, nem armas, nem discursos inflamados. Basta uma fila de desempregados, uma inflação alimentícia, um punhado de corrupção. O corpo humano se encarrega do resto, corroendo-se sozinho.
Dizem que o Brasil saiu do Mapa da Fome. Mas pergunto: quando o prato de milhões ainda está vazio, será que saímos mesmo? Ou será que apenas aprendemos a chamar a miséria por outro nome, para não estragar o jantar dos bem nutridos?
A fome é a invalidação da humanidade.
Ela não pergunta o passaporte, não distingue sotaque, nem cor da pele.
Um corpo vazio é o mesmo em Gaza, no sertão do Maranhão, nas ruas de Bombaim ou em Detroit.
Não há diferença — nem para sentir dor, nem para medir dignidade.
O nordestino, o africano, o indiano, até o “reles” americano: todos são reduzidos ao mesmo silêncio quando a barriga reclama e não há resposta.
A fome é o genocídio que não precisa de inimigo declarado.
Basta a indiferença, basta o desvio dos recursos, basta chamar de “fatalidade” o que é crime.
E quando naturalizamos esse crime, a humanidade deixa de ser humana.
Cada corpo vazio é um grito que atravessa fronteiras e silencia civilizações.
Pois a indiferença é combustível que não deixa cinzas visíveis.