Capítulo XVI – Ser de Esquerda

“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
– Fernando Pessoa

Com essas palavras, Fernando Pessoa nos deu, além da poesia, uma lição de vida ou cravou uma verdade em nossas mentes: uma aula de Ética ou indicação de um rumo a seguir.

A Ética tem esta polivalência: é caridade, religião (ou compaixão, e não medo da punição), manual de sobrevivência, regra de comportamento, de costumes, autoajuda, sabedoria & cultura — e até gastronomia e política.

Na política, a Ética abre as portas para a Esquerda (tão somente?): como a Esquerda apoia a pobreza (grande maioria do eleitorado), o candidato só precisa ser autêntico ou saber se expressar, para dizer que está do lado dela. A Direita terá uma não-conformidade, pois, ao apoiar os ricos (e combater os pobres), só obterá votos mentindo.

E mentem bem! Atualmente a deslambida mentira até ganhou nome imponente — fake news —, com apoio e alegria da canalhada (cerca de 50% da população de imprevidentes). A imprensa milionária está aí para dar-lhes consolo. A falta de regras, entretanto, é sua maior arma. Têm as facilidades que a Igreja do Diabo oferecia aos seus fiéis, encantados e entregues (era o gado da época, que Machado de Assis já nos antevia).

Para ser de esquerda, e nunca se desviar da rota, são necessários alguns comportamentos básicos:

  1. Adote um rótulo ou motivo para sua convicção (por caridade, humanismo, tradição, coerência, ou como Lei Universal à Immanuel Kant). Isso fideliza.
  2. Um esquerdista pode ter ideias diferentes, radicais ou não, de outro esquerdista — isso é saudável. Não poderá, porém, desejar destruir o outro por discordância. Isso é próprio dos joão-sem-braço.
  3. É se arrepiar com o Manifesto Comunista e com todas as teorias trabalhistas de Marx, mesmo sabendo que o comunismo só virá — e talvez — dentro de 200 anos.
  4. É saber que a pobreza é fruto da espoliação, e não da falta de mérito. Que não há países pobres, mas empobrecidos. O problema é a desigualdade.
  5. Não é razoável (como alertou Paulo Freire) que um Oprimido queira mudar sua condição financeira e passar a ser Opressor.
  6. É reconhecer que o mundo — e qualquer obra — só se faz com justiça. Tratar igualitariamente os menos favorecidos é mandamento, como mostra o texto abaixo.

Seu Amigo, o Peão de Obra

Não venha com essa gabarolice de que peões são como crianças grandes… Peão de obra não é criança e nem tão crescido assim. Está mais para o sertanejo de Euclides da Cunha: antes de tudo, um forte. E pode ser, como aquele, bruto e meigo, e, apesar da coragem, ainda acreditar em assombração.

Mesmo subalimentado, é alegre, cordial e respeitador. Sem dinheiro no bolso, é bom companheiro, amigo e humilde. Se você, Engenheiro de Obra, não consegue se compadecer ou se livrar dos preconceitos contra os menos favorecidos, errou de profissão.

Principalmente trate-o com respeito. Todo relacionamento exige isso. Se o tratar como bicho, ele responderá com a única reação possível: portando-se como um bicho. Se o agradar, terá um amigo para todas as horas.

Ele chegou à obra cedo. Bem antes das 7 estava na fila do ponto. Trabalhou pesado e merece um almoço decente. Capriche em sua refeição. Não há nada que o irrite tanto quanto uma refeição inadequada. Descubra seus gostos. Lembre-se que não há obra bem tocada se o refeitório estiver desagradando.

Ouça-o e oriente-se com suas críticas. Não há mais sinceras e precisas. Principalmente se direcionadas à sua própria administração. Mais que qualquer outro funcionário da empresa estará ele sabendo sobre a produtividade da obra, que lhe é filtrada do próprio suor.

Impressione-o com camaradagens e humor. O elogio, como a nenhum outro indivíduo, cai-lhe como uma benção. Seja mesmo astucioso. Nesta relação de trabalho ele nunca irá perceber que entre os dois, quem mais precisa do outro é você.

Não o amedronte usando sua condição de chefe e nunca lhe dê ordens diretas, atravessando seu organograma.

Saiba que a firmeza, a liderança, o humor e o caráter do chefe da obra, estão entre as notícias que mais se espalham, e sempre em manchete nas rádios-peões.

Não se faça de ocupado para impressioná-lo. Retribua-lhe seus bons-dias. Afinal você está em campo, num local de trabalho arejado, de respeito e educação, e não em um mofado escritório na Avenida Paulista.

O trabalho é pesado, mas não lhe negue. Não há mais impróprio lugar para rixas e picuinhas que em uma obra. Se quer ser admirado, não aceite bajuladores em sua sala.

Preocupe-se em lhe dar condições seguras de trabalho e cientificar-lhe disto.

Jamais tenha medo do peão, até porque ele não é de briga e não morde. Além de ofendê-lo gravemente, você perderá autoridade e respeito. Neste caso o insucesso da obra, e o seu, serão iminentes.

Sobretudo goste do peão. Ele é parte significativa de seu ofício e faz por merecer. Sua companhia é agradabilíssima, seu humor irresistível, e está dispondo-se, em troca de reconhecimento pelo seu trabalho, a admirá-lo.

Ilustração ao estilo de Portinari: peões de obra