Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, pode e deve ser incluído nesse panteão de pensadores que ajudaram a decifrar os modos de ser político e moral do brasileiro — e, por extensão, da humanidade. E o conceito de Homem Cordial, apresentado em Raízes do Brasil (1936), serve justamente como ponte crítica entre a canalhice e a simpatia aparente. É alguém que age pela emoção, pelo favor, pelo ressentimento — não pelo princípio.
O equívoco comum é tomar “cordial” como sinônimo de “amável”. Mas Sérgio Buarque, foi claro:
“A contribuição brasileira à civilização será, talvez, a de tornar possível a convivência, digna e proveitosa, da delicadeza com a sinceridade, da cortesia com a veracidade, do homem cordial com o homem justo.” (Raízes do Brasil, capítulo V)
Só que ele também advertiu que o "homem cordial" é movido pelas emoções, não pela razão ou princípios. Ele age por simpatia, favor, ressentimento ou compadrio — não por justiça, lei ou ética.
Ou seja (data vênia, a situação em outra era):
O canalha brasileiro típico não é o tirano brutal, mas o patrimonialista sorridente, que:
• chama o garçom pelo nome mas sonega imposto;
• sorri no púlpito e esmaga nos bastidores;
• diz “com todo respeito” antes de humilhar alguém;
• distribui favores enquanto destrói direitos;
• É o “bom pai de família” que defende a tortura;
• É o político afável que protege grileiros, pastores e milicianos;
• É o juiz cordial, mas cúmplice do poder;
• O pastor sorridente que demoniza minorias;
• O empresário patriarcal que explora com gentileza;
• O homem cordial é aquele que confunde o público com o privado, a justiça com a simpatia, a moral com a amizade;
• É aquele que negocia, se insinua, promete e sorri. Mas, por trás do sorriso, atua o interesse pessoal, a conveniência, o compadrio;
• E outros, na multidão. A cordialidade vira disfarce. E o canalha, elegante e funcional, se esconde dentro dela.
O “homem cordial” é o avô ideológico do canalha moderno, especialmente no Brasil.
Ele mascara o autoritarismo com bons modos, o privilégio com sorrisos, o abuso com informalidade.
Logo, sim: Sérgio Buarque cabe perfeitamente nesse debate. E ajuda a mostrar que a canalhice pode ser simpática, charmosa e até “do bem” — e por isso, ainda mais perigosa.
Este adendo, portanto, é um tributo a Sérgio Buarque — que, sem usar a palavra canalha, pode ter descrito sua anatomia afetiva.
Uma advertência: nem todo canalha é brutal. Muitos são adoráveis. Ele domina, exclui e destrói sem levantar a voz.