Muito antes da internet, do WhatsApp e das fake news com trilha sonora de pastor-rapper, o Brasil já era um terreno fértil para a estupidez. Mas também — e talvez principalmente — para a canalhice.
Em tempos remotos (que ainda pulsam sob as camadas da modernidade), não se precisava de algoritmos nem de deep fake para manipular. Bastava um punhado de jagunços, um capataz, um cabresto bem ajustado e um voto obediente. Tudo operava sob a mais fina maquinaria do poder local: finas engrenagens de mando, medo, favor e vingança.
Era uma lógica matemática: quem mandava, mandava; quem obedecia, obedecia. E quem ousava questionar... virava exemplo.
Carlo Maria Cipolla, em sua divertida classificação dos humanos — inteligentes, ingênuos, bandidos e estúpidos —, alertava para o perigo do último grupo: o estúpido, que prejudica os outros sem lucrar nada com isso. Mas Cipolla, como bom europeu, talvez não tenha conhecido o Brasil dos coronéis. Aqui, os bandidos (ou canalhas, no vocabulário popular) estavam por toda parte, com CPF, cartório e colarinho. Agiam com método. Roubavam, mandavam, matavam — mas com lógica.
Os estúpidos, por outro lado, nem sempre eram estúpidos de verdade. Eram os que obedeciam calados. Os que se calavam por necessidade. Os que votavam conforme o patrão, rezavam conforme o padre, torciam conforme o rádio da fazenda. Alguns acreditavam. Outros apenas fingiam. E muitos nem sabiam o que estavam fingindo.
Não eram idiotas — eram sobreviventes.
Mas Cipolla tem sua razão. De tempos em tempos, surgia aquele sujeito que queimava a própria lavoura só para ver o vizinho se dar mal. Ou que espalhava boatos contra a única professora da vila porque ela lia demais. Ou que aplaudia o novo chefe porque este prometia “botar ordem” — e o primeiro ato da tal ordem era acabar com os direitos dos próprios aplaudidores.
Esse, sim, é o estúpido cipolliano: o que atira no próprio pé, feliz da vida.
Mas não confundamos: a dominação brasileira nunca foi, em sua essência, estúpida. Ela foi canalha. Inteligente, às avessas. Profundamente racional na sua perversidade. Estruturada para manter os de cima exatamente onde estão — e os de baixo distraídos, culpados, vigiando uns aos outros.
Por isso, quando nos dizem que o problema do país é a ignorância do povo, vale perguntar: e quem fez questão de mantê-lo ignorante?
A canalhice dá as cartas. A estupidez joga junto. Mas os colonos — ah, os colonos — são os que ficam com as fichas vazias e o prato raso. E ainda têm que sorrir para a câmera do drone eleitoral.
No fim, Cipolla escreveu um manual sobre a estupidez humana. Já o Brasil, este escreveu uma enciclopédia da canalhice com 27 volumes estaduais, milhares de capítulos municipais e prefácios assinados por deputados.