Se chegamos até aqui, é hora de nos debruçarmos sobre as mais atrozes dúvidas de nosso estudo. Não serão as maiores — não se comparam ao fascismo ou à destruição ambiental — mas, por sua singularidade, ampliam a bizarrice geral de nosso tempo.
Falaremos de uma categoria que detém um dos maiores salários da nação, talvez perdendo apenas para políticos, juízes e outros funcionários públicos ungidos por benesses vitalícias: os médicos, sim senhor.
Tentaremos, neste capítulo, defender (ou ao menos entender) aqueles que dedicaram três anos à preparação para o vestibular, seis anos à graduação, quatro anos à especialização e, com 12 anos de prática, somam 25 anos de vida entregue à profissão — profissão essa vantajosa, sim, mas também cercada de sacrifícios, plantões noturnos e cafezinhos frios.
Têm, por antecedente cultural, uma caligrafia formada por garranchos, traço que talvez revele um desejo inconsciente de se manterem acima da escrita — e, portanto, da cultura, da literatura, da filosofia e, quem sabe, da razão.
(Em estudo psico-fosforescente realizado em nossa redação, concluímos que para escrever desta forma é necessário muito treino. Comprovam-nos os recém-formados que ainda escrevem razoavelmente e ainda que fatalmente seriam barrados no vestibular com uma escrita tão ilegível.)
É possível, sobretudo, que alguns desses garranchistas jamais tenham ouvido falar da elegância de estilo de um Machado de Assis ou do rigor lógico de um Darwin.
Pouco mais temos a comentar sobre a caligrafia médica, a não ser o medo íntimo de que algum farmacêutico mais açodado interprete um "Losartana" como "Lorax" e nos prescreva um antidepressivo infantil em vez do remédio para a pressão. De toda forma, fica a observação como pista arqueológica. Afinal, desde a descoberta da Pedra de Roseta no século II a.C., a humanidade não enfrentava tamanha dificuldade para decifrar hieróglifos.
Mas a pergunta central, a dúvida atroz, é a seguinte:
Como se explica que um médico, que passou um quarto de sua existência estudando ciências biológicas, fisiologia, farmacologia e epidemiologia, de repente se levante em rede nacional — convicto — para declarar:
a) Que a cloroquina cura a Covid-19;
b) Que a vacina transforma o sujeito em jacaré;
c) Outras esquisitices que não ousaremos repetir, por respeito ao leitor.
A resposta, felizmente, não precisa de feitiçaria: há método nessa loucura. O psicólogo Stanley Milgram nos dá uma pista preciosa. Em seu famoso experimento, demonstrou que pessoas comuns podem cometer atrocidades (ou pelo menos absurdos) quando obedecem a uma figura de autoridade. No caso dos nossos feiticeiros de jaleco, a autoridade em questão era o CRM (Conselho Regional de Medicina) ou o próprio Presidente da República — que, mesmo sem saber onde fica o pâncreas, se autoproclamou especialista em pandemias.
Mas não é só isso, como diria o narrador do programa policial, outros ingredientes temperam esse caldo de cultura pseudocientífica:
a) Vaidade de classe: Muitos médicos se veem como uma casta ilustrada, acima do cidadão comum — inclusive acima dos demais profissionais de saúde. Isso os torna vulneráveis a bajulações políticas e convites para "comissões de especialistas" fajutas.
b) Ignorância extracientífica: A formação médica é altamente técnica, mas costuma ser pobre em humanidades. Poucos médicos leem filosofia, sociologia ou história da ciência. Ignoram, por exemplo, que já se receitou mercúrio para sífilis e que a lobotomia foi, por décadas, considerada uma prática respeitável.
c) Cálculo financeiro: Em tempos de incerteza, há quem aproveite a confusão para faturar com consultas "alternativas", receitas milagrosas, vídeos monetizados no YouTube e até com “protocolos” de tratamento clandestinos. O lucro justifica o negacionismo.
d) Narcisismo epistemológico: Quando um médico, em vez de ouvir pares, prefere ouvir o próprio eco, ele já não é um cientista: é um pregador com estetoscópio. E pregador, como sabemos, vive de plateia.
e) Redes sociais: O jaleco branco em frente a uma câmera concede uma aura sacerdotal. E como o algoritmo favorece escândalos, o médico que diz “vacina salva” ganha 12 curtidas; já o que diz “vacina mata” vira convidado do podcast da extrema direita.
Em suma, nosso feiticeiro de plantão é menos culpado do que parece — mas também menos inocente do que finge.
Talvez devêssemos, como medida de precaução, incluir no juramento de Hipócrates uma cláusula adicional:
"Prometo não me transformar em profeta de WhatsApp, mesmo que tentador."
E quem sabe, num futuro menos sombrio, médicos voltem a ocupar o lugar de curadores da saúde — e não o de curandeiros da desinformação.
É possível que Freud não explicasse. Talvez Marx se irritasse. E Darwin, coitado, pedisse as contas. Porque há algo de tão perturbador quanto cômico — e tão comicamente perturbador — na figura do bolsonarista órfão de vacina: aquele cidadão que perdeu a mãe e o avô para a Covid-19, sem leito, sem oxigênio, sem imunizante, mas segue firme na fé em seu capitão.
Não falamos aqui de ignorância comum, daquelas que a escola remenda. Falamos de um tipo especial de cegueira, com lentes antirrealidade e hastes de alumínio ideológico. Um fenômeno mais próximo do transe coletivo do que da razão individual.
Como é possível manter-se bolsonarista mesmo depois de presenciar uma tragédia que o próprio governo ajudou a causar — e poderia ter evitado?
Tentaremos, como bons feiticeiros sociais, levantar algumas hipóteses. Nenhuma definitiva, todas convergentes.
1. A Morte Como Ruído de Fundo
Em sociedades brutalizadas, a morte já não é um escândalo: é uma estatística. E quanto mais pobre o bairro, mais naturalizada a perda. O filho que perdeu a mãe em Manaus, asfixiada por ausência de oxigênio hospitalar, foi informado por WhatsApp que “isso também acontece na Europa” — e, satisfeito com a equivalência fajuta, preferiu esquecer.
Esquecer é mais confortável que pensar.
2. O Orgulho Como Jaula
O bolsonarismo, antes de ser uma ideia, é uma identidade. E identidade, sabemos, é coisa difícil de trocar. Ao contrário de uma camiseta, não se muda sem sentir frio. O sujeito que passou anos dizendo que “vacina mata”, “máscara é frescura”, “ciência é coisa de comunista”, agora não quer admitir que foi enganado — mesmo que tenha enterrado duas gerações da própria família.
É o que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva. Ou, mais precisamente: a arte de preferir o erro à humilhação.
3. A Fé no Pai da Pátria
Para muitos, Bolsonaro não foi apenas um presidente: foi uma figura paterna, ou melhor, um “macho-alfa providencial”, enviado para limpar o país dos “vagabundos”, “artistas” e “professores esquerdistas”. E quando o pai erra, o filho não o abandona — protege. Justifica. Culpa os outros. A culpa foi da OMS. Da China. Do Doria. Do STF. Do avô que já era doente.
O bolsonarista órfão se agarra ao mito como um náufrago se agarra à tábua — mesmo que a tábua esteja cheia de cupins.
4. O Prazer do Ódio
É duro admitir, mas há um prazer perverso no ódio: ele simplifica o mundo. Transforma a dor em raiva e a raiva em direção. O bolsonarista enlutado não busca consolo; busca inimigo. Se a vacina não chegou a tempo, é porque os “globalistas” atrasaram. Ou o “consórcio de governadores”. Ou o Lula. Sempre haverá um outro a ser culpado. E isso consola mais do que um abraço.
5. A Mãe e o Avô Nunca Foram "Políticos"
Outro elemento triste — mas real — é que, para muitos, a morte da mãe ou do avô é vista como um drama pessoal, e não político. Faleceram, como milhões falecem, sem que o luto se transforme em consciência. São perdas do mundo doméstico, e não da arena pública. Não se conectam com Brasília, com o Planalto, com aquele homem da motociata. “Minha mãe morreu porque era idosa.” E ponto.
Assim, a perda se reduz a biologia — e escapa da história.
6. O Bolsonaro Dentro de Si
Por fim, talvez o mais cruel dos diagnósticos: a adesão ao bolsonarismo muitas vezes antecede o próprio Bolsonaro. Ele apenas deu voz ao que já existia: a misoginia, o racismo velado, a raiva do “intelectual”, o medo do pobre que sobe. O ódio à dúvida. O desprezo pelo saber. A idolatria da força. A negação da morte.
O bolsonarista que perdeu a mãe para o vírus pode, no fundo, continuar bolsonarista porque a culpa, inconscientemente, foi dela: “devia ter se cuidado mais”. Ou, pior: “estava na hora”.
É o triunfo da brutalidade sobre a empatia.
Epílogo Amargo
A tragédia individual, para virar consciência, precisa ser digerida — e isso exige introspecção, leitura, diálogo, tempo. Tudo que a extrema direita despreza. Por isso o luto, nesses casos, não liberta: aprisiona.
E o mito permanece intacto, mesmo entre as lápides.
É triste!
Quatro em cada cinco mortes pela doença no país eram evitáveis caso o governo federal tivesse adotado outra postura — apoiando o uso de máscaras, medidas de distanciamento social, campanhas de orientação e ao mesmo tempo acelerando a aquisição de vacinas. Ou seja, pelo menos 400 mil pessoas não teriam morrido pela pandemia.
Afirmações feitas durante audiência na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia,
Fonte: Agência Senado
Mortes confirmadas: 716.238