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Carta ao Leitor |
Jean-Jacques Rousseau (1755) Textos Radicais e Libertadores - Resumos & Trechos
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O que vou apresentar neste escrito não é a história factual do homem, mas hipóteses e raciocínios, não para saber precisamente como as coisas se deram, mas para examinar como poderiam ter ocorrido — o que já é bastante para apreciar o valor das instituições humanas e a legitimidade das desigualdades.
Deixemos, pois, os livros de história, que apenas nos mostram sociedades formadas, homens domesticados, nações poderosas, guerras, conquistas, e a miséria dos povos. Deixemos de lado esses relatos carregados de reis e ministros, de cidades e exércitos, que pouco ou nada nos ensinam sobre o homem em si. Retrocedamos, antes, à origem dos tempos, ao estado de natureza, onde o homem, sem leis, sem sociedade, sem linguagem articulada, vagava pelos bosques, alimentando-se de frutos e raízes, exposto apenas às forças da natureza.
É a esse homem natural que desejo considerar, esse ser solitário e livre, cuja vida é simples, cujas paixões são contidas, e cuja existência não depende de ninguém. Quero saber como, desse estado de independência e igualdade, se chegou à escravidão e à miséria dos nossos dias. Quero entender por que meios a razão, que parecia destinada à liberdade, tornou-se cúmplice da servidão.
Talvez alguém diga que nunca existiu tal estado de natureza. Mas isso pouco importa. O importante é que, ao imaginar esse estado, possamos confrontá-lo com o presente e medir o que foi ganho — ou perdido — com o progresso.
Se minha reflexão for fraca, que se aponte o erro; se for forte, que se tirem as consequências. A verdade não teme o exame. Não escrevo para agradar ou para brilhar: escrevo para ser útil. E se meus princípios forem ruins, tanto pior para mim; mas se forem bons, tanto pior para aqueles que vivem deles sem o saber.
Ao leitor sincero, que busca com coragem a origem do mal social, ofereço estas páginas. Que ele se despe de preconceitos e ouça, não o orador, mas o homem. Pois o que está em jogo aqui não é o talento da linguagem, mas a justeza das ideias. E quem sabe se, em meio à corrupção universal, não resta ainda um coração capaz de amar a verdade?