Reflexões que hoje soariam equivocadas
Os tempos mudaram. Por muito tempo, “ser ignorante” foi sinônimo de “ser idiota”, ao passo que o canalhismo se disfarçava de esperteza — às vezes visto como desculpável entre os menos favorecidos, e como astúcia meritória entre os afortunados. O resultado foi uma estética do desprezo: aplaudia-se a malícia e ridicularizava-se a dúvida. À luz de um mundo hiperconectado, certas frases célebres, se repetidas sem crítica, podem deslizar do diagnóstico para a desumanidade.
“O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas.”
— Atribuída a Bertrand Russell
“A maior desgraça da democracia é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade.”
— Nelson Rodrigues
“Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana — e, sobre o universo, ainda tenho dúvidas.”
— Atribuída a Albert Einstein
Se tomadas como licença para desprezar pessoas, essas frases empobrecem a política e enriquecem o cinismo. O foco correto não é “a massa estúpida”, mas o vetor moral que a instrumentaliza: o canalha.
Definições operacionais (para não nos enganarmos)
- Estúpido: erra sem intenção de dano, por desconhecimento, viés ou precipitação. Aprende devagar, mas pode aprender.
- Canalha: conhece o dano e o aceita (ou deseja) se disso advém proveito próprio. Aprende rápido… a explorar os outros.
- Canalha sancionado: protegido por cargos, redes, castas ou pela indiferença geral; faz o mal com recibo e aplausos.
Por que a estupidez sozinha não dá conta da ruína
- Falta de direção: a estupidez é errática; costuma tropeçar. Para virar sistema, precisa de quem a organize.
- Correção social: erros bobos são contidos por feedback, ciência, jornalismo, vizinhança. O canalha captura e silencia esses freios.
- Escala: o estúpido espalha confusão; o canalha monetiza a confusão e a transforma em máquina.
- Persistência: a estupidez cansa; o canalha terceiriza o cansaço e profissionaliza o dano.
Como opera o canalha (roteiro de bolso)
- Reenquadra a crueldade como eficiência.
- Terceiriza culpa: “apenas seguindo ordens”, “apenas mercado”.
- Premia lealdade e pune dissenso.
- Confunde crítica com ataque pessoal, e troca debate por litígio.
- Rouba a linguagem do bem comum (patriotismo, liberdade) para blindar interesses particulares.
O que reduz dano
Transparência, auditoria, jornalismo local, ciência aberta, educação moral prática, fraternidade organizada.
Zonas de risco
Opacidade institucional, incentivos perversos, monopólios de comunicação, culto à esperteza, fadiga cívica.
Acendem o alerta
“Todos fazem”, “não é ilegal se ninguém souber”, “é só uma piada”, “regra é para os fracos”.
De Russell, Rodrigues e Einstein… ao século XXI
Essas frases, lidas com generosidade, foram alertas contra a autossuficiência burra. Lidas com descuido, viram munição para humilhar. O problema não é a inteligência das pessoas comuns — é a canalhice organizada que descobre como transformar dúvida em mercadoria e certeza em tropa.
Dez sinais práticos do canalha (para identificar sem rodeios)
- Justifica o mal como “inevitável”.
- Confunde “legal” com “moral”.
- Trata pessoas como meios, nunca como fins.
- Ri da empatia, chama-a de fraqueza.
- Vive de zonas cinzentas e de NDA.
- Adora metas sem métricas de dano.
- Promove o amigo, descarta o justo.
- Se orgulha do que não pode publicar.
- Quando pego, apela para a “insegurança jurídica”.
- Se diz realista — mas só quando o real favorece o próprio bolso.
A estupidez precisa de muletas; o canalha, de plateia. Se queremos sobreviver, é menos urgente humilhar o ignorante do que desenhar instituições que desencorajam a canalhice.
Contra-medidas mínimas (o que cabe ao cidadão comum)
- Preferir processos a heróis: transparência, rotação de poder, registros públicos.
- Votar com o bolso: boicotar práticas predatórias; priorizar cadeias curtas e auditáveis.
- Recompensar a dúvida honesta: quem corrige publicamente merece confiança.
- Educar para a coragem moral: ensinar a dizer “não” cedo, com respeito e firmeza.
- Construir pequenos antídotos: cooperativas, conselhos, associações de bairro. O canalha odeia comunidade viva.
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