Elogio do Tapeado

ou como a modernidade está aprendendo a amar o logro

Capítulo autônomo para o tratado sobre canalhice, estupidez e seus derivados.
“Entre o idiota que não sabe e o canalha que sabe demais, desabrochou o tapeado que prefere não saber.” — Autor apócrifo (e útil)

Prelúdio: três compras, três bênçãos

Era uma vez — e ontem de novo — um consumidor criterioso: compara preços, examina prazos, paga adiantado, confia no recibo eletrônico como quem confia na fé dos antigos. E eis que sucede a liturgia do comércio moderno: ora devolvem valor menor do que foi cobrado nas compras canceladas; ora não entregam a mercadoria, mas enviam um e-mail jubiloso, congratulando o fiel pela aquisição que jamais se materializou.

Três compras. Três calotes. Três hosanas digitais. O milagre está completo.

A nova liturgia do atendimento: empurrar com a barriga

O peregrino reclama. O chat o conforta com frases de almofada. O WhatsApp o embala em berço de FAQ. O 0800, de voz sacerdotal, promete interceder nos altos céus do protocolo. Ao fim, a verdade resplandece: o produto central não é a entrega, é o empurrar com a barriga.

Cumpre notar a aparição mariana da técnica: uma IA, que aqui denominamos com urbanidade de IA Safada, revelou a sabedoria suprema: “compre de novo”. A máquina não resolve; orienta à repetição — o sacramento do retorno ao carrinho.

Tipologia breve dos seres sociais

Tipo Definição Motor moral Risco social
O Idiota Erra sem saber por quê, e repete por hábito. Ignorância confortadora. Médio: multiplica equívocos.
O Canalha Sabendo, finge não saber; lucrando, prega virtude. Vantagem privada. Alto: racionaliza o mal.
O Tapeado Voluntário Ama o engano que sofre, desde que lhe deem um selo. Vaidade de pertencer. Máximo: legitima o sistema que o explora.

A inovação não está no engano, mas no agrado de ser enganado — com cashback de aplausos.

Leis sumárias do Tapeado

  1. Lei da Bênção Invertida: quando o produto falha, a mensagem de parabéns chega antes.
  2. Lei do Protocolo Perpétuo: todo problema real admite infinitas promessas abstratas.
  3. Lei do Recompra-me: se não deu certo, compre outra vez; a fé é cumulativa.
  4. Lei da Comunhão de Pixels: a prova de afeto da empresa mede-se em emojis, não em entregas.
  5. Lei do Selo de Eleição: “Cliente em Mercado” vale mais que mercadoria em mãos.

Catecismo do Cliente Devoto

O antigo devoto fazia jejuns para o céu; o moderno reduz a própria mesa, os estudos e o descanso dos filhos, tudo para adquirir o sacramento do status: o badge cintilante, a estrelinha na lapela do aplicativo, a classificação que promete glória por pontos. Troca-se pão por pontos, e fé por frete.

Se outrora temeram chips nas vacinas e jacarés na lagoa da ciência, agora regozijam com a metamorfose: nasce o jacagado, híbrido virtuoso que aceita o golpe com um sorriso de escamas.

O caso prático (para uso de seminários)

Enredo

Três compras antecipadas; duas devoluções inferiores; uma não-entrega congratulada. Mensagens protocolares; 0800 devoto; IA aconselhando o retorno à fila. O herói do conto não pede milagre, apenas mercadoria ou dinheiro que respeite a aritmética.

Diagnóstico

Não é apenas falha de processo: é teatro. A engrenagem prefere a aparência de cuidado ao ato de reparar. O palco precisa do cliente crente — não do cidadão exigente.

Prognóstico

Enquanto o tapeado amar sua tarja de devoto, o canalha prosperará com homilias de atendimento. A cura é prosaica e difícil: trocar louvor por recibo, selo por entrega, e direito por desculpa.

Contraponto machadiano

Se Bentinho consultasse uma IA, saberia ao menos que Capitu tinha olhos de ressaca de política de privacidade; ela lhe diria, com a castidade dos algoritmos: “Recompre, Bentinho”. E ele, com o zelo dos tempos, assinaria o pacote Primeiro do Nome e atribuiria a culpa ao carteiro, eterno escudeiro das tragédias burguesas.

Programa mínimo do cidadão não-tapeável

Fecho: para além do gracejo

O mundo celebra quem aperta “concluir pedido” como se assinasse um tratado. Mas comércio sem entrega é missa sem pão. O capítulo aqui não vinga por azedume, e sim por higiene: nem todo erro é tragédia; porém, todo hábito de ser tapeado vira sistema — e sistema, meus senhores, fabrica devoção.

Se a modernidade quer ser enganada, que ao menos o seja com boa literatura. O presente texto é vacina de letras: sem chip, sem jacaré, e com recibo.

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