Quando a Palavra Planta Raízes
Dois homens se encontram em uma sombra de árvore imaginária: Mia Couto, o poeta da terra africana, e Ailton Krenak, o guardião das montanhas e dos rios do Brasil.
Ambos nasceram entre mundos partidos: um por guerras coloniais, outro pelo genocídio invisível das culturas originárias.
E ambos reconstroem mundos com palavras que sabem ouvir as pedras, as águas e os mortos.
Neste breve capítulo, imaginamos uma conversa entre eles — não uma entrevista, mas um bate-papo entre velhos irmãos de outras margens.
Mia Couto:
Sabe, Ailton, às vezes acho que o tempo é como um rio que corre dentro da gente. Não esse tempo do relógio, mas o outro, que tem cheiro de infância e saudade de coisas que ainda vão nascer.
Ailton Krenak:
Concordo, Mia. O nosso povo diz que o tempo não é uma linha — é um círculo. Quem caminha pensando que a linha vai pra frente acaba tropeçando no próprio passado.
A modernidade é esse tropeço eterno, tentando esquecer o que não devia.
Mia Couto:
E talvez por isso a escrita seja um modo de desacelerar o mundo, não?
De devolver à palavra a lentidão das árvores.
Gosto de pensar que escrevo como quem anda descalço numa terra quente — sentindo o que não se vê.
Ailton Krenak:
E eu gosto de ouvir as palavras que vêm de antes da escrita.
As palavras que nascem na boca de um avô ou numa roda de pajelança, onde o silêncio também fala.
Essa fala sua, descalça e quente, também é indígena, Mia. Mesmo sem sê-lo, você dança com a terra.
Mia Couto:
É que em Moçambique a terra ainda não desaprendeu de sonhar.
Mesmo depois das guerras e das cicatrizes, ela insiste em parir poesia nos olhos do povo.
As pessoas sabem contar histórias como quem cura uma ferida.
Ailton Krenak:
Aqui também temos feridas abertas.
Mas o sonho ainda respira na floresta, na pedra, no rio.
O problema é que o “progresso” quer secar até o que não é sede.
A gente resiste com palavra, sim, mas também com o corpo.
Palavra sem corpo é discurso; corpo sem palavra é silenciado.
Mia Couto:
Lindo isso, Ailton.
Palavra sem corpo é discurso — palavra com corpo é encantamento.
E encantamento é o que o mundo mais precisa agora.
Não falo de magia no sentido turístico... falo de um encantamento que devolve ao mundo sua alma perdida.
Ailton Krenak:
Talvez a gente precise escrever menos com a cabeça e mais com o chão.
Deitar no barro e ouvir o que ele quer contar.
Não é o que a poesia sempre tentou fazer?
Mia Couto:
Sim. A poesia, quando é verdadeira, é feita de silêncio entre os ruídos.
E o poeta, como o pajé, escuta o que não foi dito.
Por isso gosto tanto de escutar você, Ailton.
Você me ensina a ouvir o mundo como se ele ainda estivesse vivo.
Ailton Krenak:
E eu aprendo com você que até a dor pode virar beleza — desde que contada com amor e humildade.
No fim, somos só isso: contadores de histórias tentando segurar o mundo que escorrega entre os dedos.
(Silêncio. Os dois sorriem como quem entende que as palavras mais importantes nunca serão escritas.)