O Brasil segue firme. Firme rumo ao abismo, mas com Wi-Fi. As estradas têm mais buraco que a memória dos deputados, o Congresso parece um grande leilão de cargos, e o cidadão comum, entre um boleto e outro, tenta decidir se compra arroz ou antidepressivo.
Do ponto de vista político, vivemos uma democracia tão vibrante que, em época de eleição, até morto vota. Alguns até se reelegem. O parlamento virou um clube seleto de quem já foi pego, mas ainda não foi preso — e se for, leva celular, ar-condicionado e verba de gabinete.
A elite econômica, claro, continua firme em seu propósito de não entender o que se passa abaixo do décimo andar. Falta comida? Falta merenda? Falta água? "Mas o PIB subiu 0,2%, parabéns a todos os envolvidos", dizem, entre um jantar de lagosta e uma call com offshore.
A classe média — a eterna iludida — alterna entre pedir intervenção militar, viajar para Gramado com cinco parcelas no cartão, e fazer textão contra o comunismo, direto do iPhone financiado em 36 vezes. Se acha o centro do mundo, mas é só o recheio do sanduíche que os bancos devoram.
Já os pobres... bom, os pobres seguem sendo os únicos coerentes nesse país. Sabem que estão lascados, dizem que estão lascados, e quando alguém promete que vai "mudar tudo", desconfiam. Aprenderam na marra que quem mais fala em salvar o povo geralmente quer salvá-lo do direito de reclamar.
Nas redes sociais, reina a nova religião: a Teologia do Ódio. Todo mundo tem opinião, quase ninguém tem leitura. A dúvida foi criminalizada, o debate virou duelo de memes e o contraditório, caso raro, é punido com cancelamento sumário e linchamento digital.
A educação virou um puxadinho da desinformação. Os professores seguem heroicos, enquanto a verba some, os livros minguam, os alunos dormem de fome ou desânimo e o MEC decide que o problema da escola é a cor da parede.
A saúde pública, por sua vez, depende da sorte, da fila e da fé. Se você tiver os três, talvez receba o atendimento antes da morte.
Quanto à cultura, ou é perseguida como "lacradora" ou é reduzida a palanque eleitoral. O artista virou inimigo interno.
E no fim das contas, o brasileiro segue rindo. Não por alienação, mas por instinto. Rir para não surtar, chorar ou sair quebrando vidraça.
Esse é o panorama geral da conjuntura: trágico, cômico e indecente. Mas pelo menos ainda dá samba. E se não der, a gente canta forró mesmo.
Sim, o país está um caos — mas é um caos tropical, sinfônico, que de vez em quando solta uma flor entre os escombros. O Brasil, ao contrário da lógica, continua de pé. Aos trancos, barrancos e memes, mas de pé. E se ainda há um povo, há um sopro.
José de Alencar sonhou com Iracema, a virgem dos lábios de mel, filha da taba e da floresta. E embora a floresta hoje sangre em silêncio sob tratores e correntões, ainda pulsa verde entre os galhos que resistem.
João Cabral de Melo Neto secou o sertão em pedra e osso. Mas até lá, onde a morte virou paisagem e o menino nasce com fome de água, há quem plante. Há quem colha umbu na seca e faça poesia com casca de palma.
Vinicius de Moraes cantou o mar e o amor. E mesmo quando a praia virou loteamento ou arena de influencer, ainda há um velho pescador com rede no ombro e sal na barba.
Nas periferias, entre paredes descascadas e sonhos remendados, há orquestras de latas, batalhas de rima, funk com tese e samba com denúncia.
Há cientistas que ficaram. Há médicas no interior do Amapá que usam bicicleta, estetoscópio e coragem.
E há jovens. Ah, os jovens. Ainda cheios de raiva e meme, mas também de perguntas. Querem outro mundo. E fazem com que a esperança permaneça em plantão voluntário.
O Brasil é uma nau furada — mas o povo é peixe. E enquanto houver peixe que canta, nem tudo está perdido.