"Durante a guerra de 1914, um capitão lhe perguntara se ele era mesmo \"aquele Schöenberg, o músico de vanguarda\" e ouve como resposta: \"Ninguém queria sê-lo; era preciso que alguém fosse, então apresentei-me como voluntário.\""
Diferentemente do que pensam muitos, a Música Erudita Moderna não foi escrita com o intuito de chocar ou incomodar a burguesia, ou provocar cenas de pugilato. E não morde. A sua finalidade é apenas dar prazer, divertir, impressionar e ser agradável.
Há, é verdade, na arte moderna, uma certa percentagem de música de vanguarda cuja finalidade é agitar e sacudir as pessoas à força de originalidade: alguns compositores compõem para o piano preparado, enchendo seu interior com grande variedade de objetos metálicos com a finalidade de modificar seu timbre normal. Há os que organizam música artificial em fita magnética, eletronicamente e um outro ramo da composição, chamada música aleatória, que escreve música, por exemplo, para uma orquestra de aparelhos de rádio.
Destes últimos, não se ocupará este Roteiro, porém não negará uma de suas utilidades: fazem com que um Stravinsky ou um Béla Bartók, pareçam-nos ingênuos.
Beleza e tonalidade
A primeira pergunta que se faz, a respeito da Música Moderna é esta: "O que terá acontecido à beleza, àquela que costumamos associar à Mozart ou a Tchaikowsky?" Qualquer desses compositores responderá que seus propósitos artísticos são exatamente os mesmos de Mozart ou Tchaikowsky: escrever música bela.
Uma transformação profunda e fundamental ocorreu à tonalidade (a beleza que estávamos acostumados). Para compreender esta transformação, será necessário compreendê-la melhor. Em música, tonalidade significa simplesmente que uma determinada nota — chamada tônica — é a principal, enquanto todas as outras são dela dependentes.
Assim, no desenvolvimento de uma música, passaremos, ordenadamente ou não, por diversas notas, conquanto tenhamos que retornar sempre ao ponto de partida, a nota tônica. Suponhamos ser o dó a nota tônica de nossa música, que ficaria assim: dó, ré, sol, lá, dó, ré, sol, lá, dó. Assim, todas as notas se relacionam, quer do ponto de vista melódico, quer do ponto de vista harmônico com este centro tonal.
Consideremos ainda que toda a música dos últimos trezentos anos está baseada ou tem à sua disposição doze notas e uma dessas será o centro tonal que servirá de partida e ponto de retorno. Nas doze notas, que formam a escala cromática, se baseou toda a evolução da música com combinações cada vez mais livres surgindo harmonias e novas modulações cada vez mais surpreendentes.
A palavra modular é extremamente simples de compreender: quer dizer passar de uma escala para outra, de uma tonalidade para outra. A finalidade será sempre, a procura de variedade. Os compositores começavam a cansar-se e a aborrecer-se de estar presos a uma única tonalidade durante muito tempo e, naturalmente, procuravam outras tonalidades, permanecendo nelas durante períodos de tempo cada vez mais curtos, à procura de novos horizontes e enriquecimento musical.
Dissonância e melodia
E cada vez que um grande compositor contribuía pra mais uma pequena evolução, os "árbitros" do mundo musical uivavam: "Dissonâncias!", em relação à Quinta Sinfonia de Beethoven. "Dissonâncias!", em relação a uma mazurca de Chopin. "Dissonâncias insuportáveis!", e ainda, em relação à 2ª Sinfonia de Brahms: "seria simpático que Brahms se lembrasse, uma vez por outra, de introduzir um pouco de melodia na sua obra, para variar."
Exatamente esta é a crítica que hoje em dia ouvimos em relação à música contemporânea: não têm melodia e é dissonante! Vejamos o que querem dizer estas palavras.
A melodia, a linha melódica é uma sucessão de sons diferentes, organizados de modo a produzirem em nós próprios uma impressão durável e significativa. Mas significação, em música, é um conceito extremamente ilusório. O que podemos afirmar é que uma série de sons que encerre uma significação é qualquer coisa que nos impressiona de uma maneira ou de outra, que nos afigura artisticamente bela.
Tal como "melodia", a palavra dissonância é outra palavra perversa, empregada a torto e a direito para exprimir desagrado em relação à música. Porém, muitas das músicas não seriam o que são, sem a dissonância. Eis uma das raízes da expressividade musical, dado que uma nota dissonante (a que não pertence a um determinado acorde) é sempre a mais expressiva desse acorde, exatamente porque lhe é estranha.
A dissonância cria, então um estado de tensão e, depois, uma sensação de agradável repouso, na resolução. Assim, vemos que a dissonância também é um conceito vago e relativo e que sua evolução, conjuntamente com a modulação e as novas harmonias, imprimiu à música uma força expressiva cada vez maior.
Wagner, Schöenberg e o atonalismo
Neste ponto entra Richard Wagner com sua ópera Tristão e Isolda, que a partir dos primeiros compassos inicia uma série de modulações que o ouvinte perde o ponto de apoio tonal (veja Tristan und Isolde — Act I — Prelude). Cria uma música expressiva, dissonante, insatisfeita pela sua ânsia de modular de tonalidade em tonalidade, ou uma tonalidade indefinida. Sobretudo, deixa aos demais compositores, uma série de problemas complicados: por exemplo, ficariam num impasse, com a impressão de que nada poderiam escrever, e que nada mais poderiam explorar, uma vez que os fundamentos da tonalidade tinham-se tornado o mais livre possível.
As reações ou resultados que se verificaram nesta fase da história da música foram várias, e constituem o que hoje conhecemos por Música Moderna.
Todos os compositores do século XX podem ser repartidos por dois campos: os partidários do atonalismo em oposição aos que lutam para preservar a tonalidade a qualquer preço. Tudo começou por alturas de 1910 com o genial compositor Arnold Schöenberg, que partiu da tradição wagneriana. O compositor, inicialmente distendendo a tal ponto os limites da tonalidade, acaba por originar a música atonal, música composta sem qualquer relação com uma dada tonalidade e que tem à sua disposição doze sons.
Em 1912 surge o ciclo de canções Pierrot Lunaire, que ouviremos abaixo. A cantora não canta, propriamente, mas entrega-se a uma espécie de declamação e que é ao mesmo tempo, canto, fala e entoação. Sentindo-se um irreprimível desejo de procurar uma janela para receber uma lufada de ar, não estranhe, é justamente neste estado de espírito que reside o interesse e o êxito desta obra.
Assim soa o atonalismo livre. Mas Schöenberg, talvez por não se sentir bem em um sistema tão anárquico, fez substituir o já desprezado sistema atonal por outro novinho em folha — o sistema dodecafônico — que permite escrever música sem o risco de fazer lembrar qualquer sugestão de tonalidade. O sistema é simples: distribuindo-se aleatoriamente as doze notas da escala cromática, forma-se uma série. A série é utilizada em vez de uma escala e constitui a base de qualquer peça ou andamento. Será necessário saber como se tratam contrapontisticamente estas séries e isto se pode complicar ao extremo.
Ficou destinada a Alban Berg, o grande discípulo de Schöenberg, a tarefa de tornar mais "humano" o sistema dodecafônico.
Debussy, Satie e o neoclassicismo
Entretanto, se voltarmos para o campo oposto, verificamos que os compositores "tonais" continuaram suas pesquisas. Claude Debussy, por exemplo, fez inúmeras tentativas no sentido de "rodear" a tonalidade — utilizando as escalas de tons inteiros, os movimentos arbitrários dos centros tonais, etc. Mas, na verdade, contribuía mais para preservar a tonalidade, que para destruir. As suas importantes experiências com o atonalismo, que tiveram grande influência, exerceram-se mais diretamente no sentido de criar novos ambientes em função dos quais a tonalidade não fosse obsoleta mas, ao contrário, pudesse existir como tal. A obra de Debussy encontra-se, portanto, numa zona intermediária entre a música tonal e a música atonal e, hoje em dia, sabemos que ela ficou na história, não se trata de uma aventura, mas de uma realidade.
Trata-se de uma questão de "iludir" a tonalidade dando-lhe novos aspectos, o que Debussy conseguiu utilizando todos os recursos do impressionismo francês.
O grande centro musical do mundo deslocava-se agora para Paris, para longe de Wagner e de todo o tempestuoso movimento romântico alemão que ele representava. E um novo grupo de compositores começava a formar-se em redor da figura pioneira de Erik Satie, um compositor que reagiu àquele movimento recusando-se, simplesmente, a "dar nas vistas".
É de Satie uma pequena peça extremamente simples e desapaixonada, uma breve melodia com um ligeiro acompanhamento — a Gymnopédie. Vamos ouvi-la.
Neoclassicismo e Stravinsky
Todo este espírito objetivo, recheado de simplicidade, clareza e humor, originou naturalmente um novo movimento chamado neoclassicismo que foi buscar as suas influências e a sua inspiração no século XVIII — a Haydn, Bach e Mozart. O primeiro passo nessa direção foi dado por Igor Stravinsky. Observe A Sagração da Primavera abaixo.
Voltamos à Bach! Atenção. Há uma grande diferença e é nessa diferença que reside a moderna música tonal. Tudo consiste nos vários processos que foram usados para preservar o tradicional conceito de tonalidade mas transmitindo-lhe uma maior frescura, atualidade, e — por que não? — modernidade...
Processos e ritmo
Quais foram esses processos? Bem, em primeiro lugar, temos um regresso em massa ao material musical tradicional, como as velhas escalas, representando uma tentativa de fuga ao pesadelo dos doze sons. Os compositores esqueceram, durante algum tempo, a escala cromática e procuraram encontrar vida na velha escala de sete notas, a escala diatônica. Nasceram, assim, obras como Appalachian Spring de Aaron Copland que é tão diatônica como uma cantiga de ninar.
Já que falamos em Bach, porque não ouvir também Villa-Lobos? Procure em sua página por Bachianas Brasileiras.
É possível que um dos melhores meios para rejuvenescer a música tonal seja a utilização ainda mais livre da nossa velha amiga dissonância. Imagine duas melodias diferentes produzidas simultaneamente, em contraponto. Em determinados momentos, os choques entre as duas melodias são inevitáveis. Um pianista poderá tocar com uma das mãos o Parabéns a Você enquanto que com a outra, A Marselhesa. Se quisermos ser convencionais, por assim dizer, teremos que dar um "arranjo" a uma dessas melodias para evitar choques, mas, se quisermos ser "modernos", é simples, deixemos que os choques dissonantes aconteçam.
Na realidade, não é bem assim. Tal como acontece em relação ao contraponto "consonante", o contraponto moderno requer uma enorme destreza técnica e um apurado sentido de escolha. A única diferença reside no fato de o uso da dissonância ser incomparavelmente mais livre e não estar sujeito às antigas regras de preparação e resolução.
E o que dizer do ritmo? De todos os elementos que constituem a música, os compositores modernos encontraram no ritmo o elemento menos aproveitado ou explorado pelos grandes compositores do passado. A tradição alemã apresenta-nos o ritmo num estado de pouco desenvolvimento: quadrado, simétrico e regular. E existem inúmeras maneiras para distorcer o ritmo... Poderá haver uma distorção rítmica através da síncope, da alteração métrica, da deslocação das acentuações, do cruzamento dos ritmos, etc. O melhor exemplo é A Sagração da Primavera em que Stravinski, com sofisticação e definitivamente, explorou ao máximo as possibilidades do ritmo.
Panorama final
Assim, a par de novas cores, timbres, dissonâncias, harmonias, ritmos e este novo contexto e sentido de objetividade, um grande compositor moderno pode empregar, com uma atitude ainda mais arejada, processos que são tradicionais em toda evolução musical. Tendo este, o que é hábito se expressar como "alguma coisa a dizer", poderá fazê-lo ainda sem se recorrer ao sistema dodecafônico de Schöenberg para garantir originalidade a sua música. E é ainda possível encontrar vida, mesmo no sistema tonal tradicional.
Tivemos, assim, uma panorâmica da música moderna dividida em dois campos, tonal e atonal, com Stravinsky e Schöenberg na posição de chefes de fila. Nos derradeiros anos se assistiu ainda, uma surpreendente aproximação dos dois campos. Stravinsky mostrou um profundo interesse pela técnica dos doze sons, o que depreende-se de suas últimas obras. O mesmo se aplica a muitos outros compositores tonais. Por outro lado, muitos compositores no campo do atonalismo se aproximaram da música tonal. Em todos os casos, todos estão embrenhados nesta busca de uma nova beleza. Talvez seja este o futuro da música moderna.
E, tudo que nos rodeia é arte moderna. Podemos por vezes encontrar as inovações de James Joyce em revistas de novelas que compramos na tabacaria da esquina. Em um anúncio gráfico, será possível encontrar influências de Mondrian ou Miró. Em uma peça de teatro, ou na televisão, será possível que a música de fundo seja de Bartók...
Em resumo, recebamos a música moderna de braços abertos. Aceitemos a música moderna como sendo a nossa música.
Links
- — A terceira e mais famosa parte da suíte para piano de Claude Debussy, composta em 1888 e publicada em 1903.
- — obra composta entre 1916 e 1917; leveza, humor e maestria orquestral.
- — Concerto de 1935, dedicado "à memória de um anjo".
- — referência máxima para ritmos e contraste.
- — peça emblemática do atonalismo e do Sprechstimme.