Como um Instrumento Toca Duas ou Mais Vozes — A Persistência Contrapontística de Bach

Este capítulo explica, da maneira mais simples possível, um dos segredos mais impressionantes da música clássica: como um único instrumento pode tocar duas ou mais linhas melódicas ao mesmo tempo. Para entender Bach, para ouvir Bach, e até para gostar de música clássica em geral, este ponto é fundamental.

Em música, chamamos cada linha independente de voz. Uma voz é uma melodia completa, com vida própria. Em Bach, é comum termos 2, 3 ou 4 vozes acontecendo simultaneamente. E sim: às vezes um único instrumento sustenta duas vozes sozinho.

1. Quando um violino toca duas vozes

O violino tem apenas quatro cordas, mas Bach descobriu que era possível fazê-lo cantar como se fossem duas pessoas diferentes. Ele usa três técnicas simples:

O melhor exemplo, e também o mais claro, é a: Fuga da Sonata para Violino Solo Nº 1, BWV 1001.

Em muitos trechos o violino possui:
• uma voz cantada (tema da fuga)
• e outra voz de acompanhamento feita de notas alternadas

Você poderá ouvir facilmente duas melodias simultâneas, ainda que apenas um violino esteja tocando.

2. Quando um teclado toca três ou quatro vozes

O teclado permite algo ainda mais espantoso: manter três ou quatro vozes independentes ao mesmo tempo. Cada mão pode tocar duas vozes: uma mais grave, outra mais aguda.

O exemplo mais didático é a: Fuga em dó sustenido menor, BWV 849 (Cravo Bem Temperado I).

Ela tem quatro vozes contínuas. Ouvindo com atenção, você percebe:

Não importa se você interromper a música em qualquer ponto: o acorde vertical estará completo. Este é o “milagre” do contraponto de Bach: a multidão horizontal de melodias forma, a cada instante, um edifício vertical perfeito.

3. A Arte da Fuga — o laboratório final

Se o objetivo é mostrar a persistência contrapontística de forma evidente, nada supera: A Arte da Fuga, BWV 1080.

São quatro vozes ininterruptas, claras como linhas de arquitetura: baixas, médias e agudas.

Aqui o aluno enxerga que cada voz é uma “pessoa” com opinião própria, mas todas obedecem a uma regra maior — o tema da fuga — como monges seguindo uma mesma oração.

4. O ouvinte cético e a prova auditiva

Para quem ainda duvidar que um instrumento possa carregar várias vozes:

  1. Ouça 30 segundos da Fuga BWV 1001 para violino solo.
  2. Depois, 30 segundos da Fuga BWV 849 para teclado.
  3. Por fim, 20 segundos de qualquer Contrapunctus da Arte da Fuga.

Se o ouvinte perceber pelo menos duas linhas vivas e independentes, a prova está feita. O objetivo deste capítulo não é transformar ninguém em músico, mas ensinar um tipo de escuta que multiplica o prazer. Sem essa chave, Bach soa complicado; com ela, Bach se ilumina.

E como isso muda a audição?
Porque a música clássica, em grande parte, é “tecida” com vozes múltiplas. Aprendendo a ouvir duas, você aprende a ouvir três, quatro e até mais.