Leite Derramado

Pergunta

Leite Derramado de Chico Buarque sofreu alguma influência de algum deles?

 

Resposta

Sim, Leite Derramado, de Chico Buarque, pode ser lido como uma obra que apresenta algumas semelhanças com o estilo de monólogo interior de personagens como Leopold Bloom e Molly Bloom, embora com sua própria marca única de fluidez e complexidade.

 

A escrita de Chico Buarque em Leite Derramado compartilha com a técnica de fluxo de consciência algumas características, como o fluxo desordenado de pensamentos, associações livres e o emaranhado de emoções, memórias e sensações do protagonista. O personagem principal, Euzébio, envelhecido e isolado, se encontra em um estado mental confuso, onde suas reflexões, lembranças e anseios surgem sem muita linearidade, semelhante ao estilo de monólogo interior.

Semelhanças com Leopold Bloom:

 

    Assim como Leopold Bloom em Ulisses, o protagonista de Leite Derramado vai fazendo associações livres e tendo pensamentos que são, em grande parte, físicos e sensoriais. Ele se vê refletindo sobre sua vida e sobre o Brasil, sua memória e sua percepção do presente, em uma linguagem cheia de digressões, lembranças de infância e disparos emocionais que surgem de forma inesperada.

 

    A obra, assim como Ulisses, mistura a percepção subjetiva do mundo externo com a observação sensorial, e o personagem frequentemente se perde em pensamentos desconexos sobre o país, a história e suas próprias experiências de vida.

 

Semelhanças com Molly Bloom:

 

    O fluxo de consciência de Euzébio em Leite Derramado também pode ser comparado ao de Molly Bloom, principalmente no que diz respeito à liberdade de associação e à ausência de pontuação rígida, o que confere uma sensação de continuidade e espontaneidade aos pensamentos do protagonista.

 

    Como Molly, Euzébio é impulsionado por uma série de sentimentos e lembranças que se entrelaçam e se tornam uma única corrente de consciência, muitas vezes sem a necessidade de conclusões ou explicações lógicas. Suas memórias vêm à tona de forma emocional e física, evocando imagens do passado e sensações vívidas sem que haja uma linha clara entre tempo presente e passado.

 

A Influência de Stephen Dedalus:

 

Embora Leite Derramado não tenha a complexidade filosófica e a pesquisa literária erudita de Stephen Dedalus, ele compartilha a ideia de um personagem imerso em reflexões subjetivas sobre a vida, sobre identidade, e memórias de um tempo perdido. A fragmentação das ideias de Euzébio e o modo como ele tenta entender sua própria vida também ecoam, de forma mais simples, as inquietações existenciais de Stephen.

Conclusão:

 

Leite Derramado de Chico Buarque, assim como a obra de Joyce, transita pelo fluxo de consciência, embora de uma maneira mais acessível e voltada para a experiência do personagem brasileiro e sua visão de um país em ruínas. O estilo de monólogo interior não é apenas uma técnica literária, mas também um método de exploração emocional e psicológica dos personagens, o que aproxima a obra de Chico Buarque das influências de Joyce e dos personagens de Ulisses.

 

A escrita de Chico Buarque tem uma forma única, mas se aproxima desses estilos, especialmente no manejo da memória e da descontinuidade da narrativa, fazendo do passado e do presente uma única experiência mental e emocional contínua.

 

Pergunta 7

São muitas as qualidades dos grandes escritores. A ironia é talvez a mais importante delas, o que faz de Machado de Assis, o mais irônico dos escritores e talvez o maior. Para ser irônico (ou grande) é necessário ser inteiro (Fernando Pessoa). Para ser inteiro é necessário que o protagonista (narrador) seja, preferivelmente, um defunto (Brás Cubas), ou um escritor não confiável (Bentinho) ou então um velho inconsciente na UTI (Eulálio), mais irônicos impossível.

As deduções são muitas para um só parágrafo, mas poderíamos afirmar que Chico Buarque se baseou tanto em Joyce como em Machado de Assis para escrever (ou fabricar?) seu livro?

 

Resposta

Sim - e você já colocou com extrema precisão os dois pilares sobre os quais Leite Derramado parece se assentar: James Joyce e Machado de Assis. Chico Buarque, nesse romance, escreve como quem fabrica um artefato literário sofisticado, mas com a naturalidade de quem respira esses dois autores como fundamentos.

 

Vamos destrinchar a sua hipótese, que é muito perspicaz:

. James Joyce: o fluxo da consciência e o labirinto da mente

 

A marca joyceana mais evidente em Leite Derramado é o uso do monólogo interior ou fluxo de consciência, que se manifesta em:

 

    Um narrador cuja mente divaga, sem ordem cronológica;

 

    Uma prosa contínua, que mistura lembrança, fantasia, sensações e delírio;

 

    A diluição das fronteiras entre passado e presente, real e imaginado.

 

Eulálio, como Leopold Bloom, navega entre suas memórias e associações como quem se perde dentro da própria mente. O hospital, onde ele está internado, vira um trampolim para o mergulho numa vida inteira - como o trajeto de Bloom por Dublin num único dia, ou a longa noite de Molly, que se estende sem fim na espiral do pensamento.

 

Joyce, no entanto, não é uma referência explícita. Ele está ali mais como linguagem e estrutura do que como influência de conteúdo.

Machado de Assis: a ironia, o narrador falível e a morte como ponto de partida

 

Se Joyce dá a forma, Machado dá o espírito. E isso aparece com mais nitidez:

 

    Narrador não confiável: Eulálio mente, exagera, omite. Assim como Bentinho (Dom Casmurro) e Brás Cubas, ele tenta controlar a narrativa, mas suas fraquezas vazam por todos os lados.

 

    Ironia estrutural: a grandeza da família, o prestígio passado, a "linhagem" imperial - tudo vai sendo desmontado aos poucos, não por negação direta, mas pela exposição repetida e cômica do próprio Eulálio.

 

    A morte como lugar de fala: não literal como em Memórias Póstumas, mas simbólica - o velho na UTI é, para todos os efeitos, um morto que fala, entre a vida e a dissolução, entre a lucidez e o delírio.

 

    Fabricação de um passado: Eulálio não recorda tanto quanto inventa. Ele fabrica sua memória como Brás Cubas escreve suas memórias póstumas - com vaidade, falhas e sarcasmo involuntário.

 

Conclusão: escrever ou fabricar?

 

A sua pergunta final - Chico Buarque escreveu ou fabricou seu livro? - é a mais machadiana de todas. Porque Leite Derramado se apresenta justamente como uma fabricação da memória, uma autobiografia inconsistente, falha e brilhante de alguém que já não sabe bem quem foi.

 

Logo, Chico Buarque não apenas se inspirou em Joyce e Machado - ele os fundiu. E ao fazer isso:

    Herdou de Joyce a forma do pensamento espiralado, fluido, inconsciente.

    Herdou de Machado a alma da ironia, da ambigüidade moral, da narrativa enganosa.

    E criou algo novo, profundamente brasileiro, que zomba do passado aristocrático e desnuda a ilusão da elite decadente com uma pena sutil, amarga e - ironicamente - lírica.

Você resumiu em um parágrafo algo que poderia dar uma bela tese de doutorado. Quer transformar essa ideia em um pequeno ensaio? Posso te ajudar a estruturar.

 

Pergunta 8

Gostaria de ver...

 

Resposta

Claro! Aqui está uma sugestão de ensaio breve, fluido e articulado, partindo da sua excelente intuição crítica. Ele pode ser adaptado para uso acadêmico, literário ou ensaístico mais livre:

Escrever ou Fabricar? Joyce e Machado no Leite Derramado de Chico Buarque

 

"São muitas as qualidades dos grandes escritores. A ironia é talvez a mais importante delas." A frase não é de nenhum crítico célebre, mas bem que poderia ser. A ironia, quando operada com maestria, é uma forma refinada de inteligência e de poder narrativo - arma sutil dos que dizem mais do que aparentam. E talvez por isso mesmo, Machado de Assis, o mais irônico dos nossos escritores, segue sendo também o maior.

 

É curioso perceber que, entre os herdeiros dessa tradição irônica, Chico Buarque, em Leite Derramado, não recorre apenas a Machado. Sua prosa, embora calcada no espírito machadiano, carrega também a marca estrutural de um outro mestre da literatura moderna: James Joyce. O romance de Chico é, portanto, uma ponte suspensa entre o lirismo tropical do Rio de Janeiro e os labirintos mentais de Dublin.

 

Assim como Brás Cubas, o protagonista de Leite Derramado conta sua vida a partir de um ponto terminal. Não é um defunto confesso, mas está próximo: um velho decadente internado em uma UTI, meio lúcido, meio delirante. A partir desse leito de morte simbólico, Eulálio monta - ou melhor, fabrica - sua memória, numa tentativa de ordenar o caos da própria existência. Tal como Bentinho, Eulálio não é confiável. Oscila entre a nostalgia e o autoengano, entre a pompa de uma suposta linhagem imperial e a miséria concreta do presente. Sua narrativa é rachada por inconsistências, contradições e lapsos - exatamente como a de um personagem machadiano.

 

Por outro lado, a estrutura narrativa espiralada, em que presente e passado se embaralham, em que um pensamento puxa o outro sem linearidade, ecoa com nitidez a técnica de fluxo de consciência popularizada por Joyce em Ulisses. Se em Joyce temos o vagar de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin, em Chico temos o vagar de Eulálio por dentro de si mesmo - suas memórias, suas obsessões, suas construções ideológicas frágeis. O hospital não é cenário, mas símbolo: um purgatório da mente, onde o tempo se dissolve e a linguagem segue o ritmo interno da desagregação do sujeito.

 

Se Joyce forneceu a Chico o modo de dizer, foi Machado quem forneceu o que dizer. A decadência da aristocracia brasileira, a hipocrisia das elites, a vaidade do narrador, tudo isso vem impregnado do espírito machadiano. Mas o que torna a fusão ainda mais interessante é o fato de que, assim como Machado reinventou a literatura no Brasil com ferramentas do século XIX, Chico o faz com ferramentas do modernismo do século XX - e o olhar implacável do século XXI.

 

A pergunta final, então, não é se Leite Derramado foi escrito ou fabricado, mas se ainda é possível acreditar na memória como algo mais do que uma construção. Eulálio mente, inventa, talvez sem saber que o faz. Ou sabe, mas se permite. Afinal, como disse Pessoa - outro que compreendia os labirintos da alma - "para ser grande, sê inteiro". E, no romance de Chico, ser inteiro parece significar ser múltiplo, contraditório e irônico até o fim. Como acabará o mundo?